sábado, 29 de setembro de 2012

Espelho turvo



Cansei desse negócio de tentar ser bom.
Cansei dos meus retratos da falsa sensação.
SILVA.

Dizem por aí que ele tinha crescido. Ainda que usasse o mesmo humor ácido e alguns sorrisos amarelos para situações embaraçosas, ainda que tivesse mudado pouco seu guarda-roupa, ainda que gostasse daquele urso velho de tanto tempo que fica sobre sua cama. Ainda que o tempo trouxesse resquícios e ele tivesse tão próximo de atravessar uma linha imaginada e desenhada para fechar um ciclo, ele simplesmente se sentia pequeno.

Mais cedo, o viram em frente ao espelho, descabelado, rosto inchado, mas ainda sem rugas. O reflexo era turvo, cheio de imperfeições, parecia simplesmente ter perdido os óculos que antes o encorajaria para encarar qualquer coisa. Não sabia qual rua seguir, se quer um atalho o empolgaria. Ficou por horas ali, em frente ao espelho, esperando a insegurança passar para que vestisse de novo o personagem tão bem acabado e convincente que todos torciam no final de uma seriado qualquer. Insegurança vestida de amores quase tão bem resolvidos quanto os dias da próxima estação. Demorou de passar. Demorou de chegar. Desistiu por hoje e voltou para o macio de sua coberta em um dia que nunca conseguiria ser colorido ou preto e branco, apenas rabiscado em tons de cinza.

Dizem por aí que ele dormiu até que pudesse voltar à cena em tons de vermelho escarlate e com um sorriso tão mais ácido que seu humor. Até então, o espelho havia continuado turvo!

Texto de Patrick Moraes

domingo, 23 de setembro de 2012

Li



Uns chamavam de Alice, outros de Li (isso, duas letras apenas), mas a maioria apenas a conhecia pelo sorriso simpático e a atenção que sempre transbordava com o olhar. Cabelos curtos, magrela e bem alta. Se não era a mais desejada do colégio, era a mais interessante em suas palavras bonitas e seus escritos borrados, por vezes, de lágrimas. Lembro bem daqueles abraços com gosto de algodão doce e os beijos de chocolate. Era feita de cores e jamais conseguiu decidir uma delas para pintar um autorretrato.

Entrou para o teatro logo cedo, mas resolveu que gostava mesmo era das palavras. Sabia escrever o amor de tantas formas que, por vezes, ficava deformando corações cor de rosa só para não perder o costume. Dia desses apostou com o mundo que nada mais daria certo em seus romances construídos em jardins de jasmins e brisas com cheiro de campo. Sabia que era um jogo de aposta arriscado, mas ainda assim o fez. Decidiu jogar fora a boneca que mais amou durante os poucos anos que tinha e ir em busca de uma grande fábrica de fofoletes. Tinha certeza que nas pequenas caixinhas iria conseguir completar os seus sorrisos solitários de todas as manhãs e ser amada.

Ainda a vejo caminhando com vestidos floridos e um batom tão claro que torna-se imperceptível ao rubro das bochechas tímidas. Vi que abandonou a fita que carregou por meses no cabelo e agora simplesmente amarra os poucos fios de uma forma propositalmente desleixada. Quanto a aposta, dizem que Li perdeu, apesar da grande insistência. A boneca velha ainda continua embaixo da escrivaninha onde ela escreve pequenos poemas todas as noites e a crença em um final de contos de fadas ainda pode ser vista em seus rascunhos embolados sobre a cama.

Texto de Patrick Moraes

Conheça também Bento e Iara.

Esse texto faz parte da série
escrita exclusivamente para Esquinas.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Em uma esquina


If you're broke then I will mend ya
and keep you sheltered from the storm
Ed Sheeran



Vi você perdido na sacada daquele prédio de cor descascada ainda que fosse novo. Nossos olhares não se cruzaram. Éramos dois pontos paralelos, mesmo que eu puxasse a todo custo a minha linha para chegar mais próxima da sua. Lembro de ter descido do meu prédio, chegado bem perto do teu jardim, olhado pra cima e esboçado um grito que pudesse ecoar o meu desejo desesperado de cruzar nossas retas.

Dois dias se passaram e, dessa vez, você tinha puxado uma cadeira, olhado pra mim e sorrido. Talvez nem fosse um riso, fosse um mexer de canto de boca provocado pela minha insistência disfarçada de simpatia. É, costumo ser simpático quando quero unir pontos de uma travessia. Você foi adorável nos outros dias. Ainda não sabia seu nome, mas decorei o casaco branco que você usava para ir ao colégio e aquele penteado milimetricamente desajeitado. Todas as noites te via chegar, abrir a cortina do seu quarto e acenar, de longe, com os olhos que exalavam curiosidade e necessidade de afeto.

Não demorou muito para eu cruzar contigo na esquina do meu prédio, perto do seu. Pensei em fugir pela faixa de pedestre, mas o sinal fechou. Ainda tentei passar despercebido entre os carros, mas você segurou meu braço e riu. "Espera!". Já não sabia se me assustava mais com a buzina daquela kombi velha, com sua forma atenciosa de me tratar ou com o sinal que simplesmente resolveu ficar fechado por mais de um minuto.

Desisti de atravessar a rua. Descobri o seu nome. Soltei sua mão do meu braço e a segurei levemente forte. Era a forma de dizer o quanto as nossas ruas foram construídas para se encontrar em uma esquina. E se não fosse nessa, seria em outras dispersas em qualquer avenida, mas com tanto desejo, curiosidade e afeto que qualquer amor ficaria com inveja.

Texto de Patrick Moraes