segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O boneco de um ano

"This home is where my heart is
My heart is where we both live
I'm sorry for acting so silly"
Tiago Iorc


Era noite de domingo. Não me lembro se havia lua cheia, se o céu tinha estrelas, mas sei que fazia bastante frio quando você nasceu. Era pequeno, tímido, curioso e tinha uma inocência sem tamanho ainda dentro de si. Você adorava brincar, mesmo que suas feições fossem, na maior parte do tempo, de birra. Não era bravura, era só uma forma de intimidar, de não deixar que qualquer um tentasse chegar perto para te fazer sorrir.

Nos seus primeiros meses, foram incontáveis as suas birras, tão incontáveis quanto as nossas brincadeiras naquele jardim. Você sempre corria quando me via chegar, eu sempre contava as horas no trabalho para poder te encontrar. Ver o sorriso de poucos dias ainda era minha diversão preferida de quase todas as noites. Você aprendeu aos poucos a falar a minha língua e, de repente, estávamos alinhados em um papo sem precisar soletrar mais nenhum sentimento.

Seus olhos; eles eram tão dengosos quando estavam tristes. Ou quando, simplesmente, queriam me convencer dos seus mimos. Gostava de te colocar deitado em meu colo, te fazer cafuné e me perder entre uma palavra e alguns risos. Daquele mesmo jeito quando chegou o primeiro urso de pelúcia. Era a brincadeira de ter um filho, com nome, afeições e direitos garantidos por decretos sentimentais. A guarda era minha, o carinho era nosso.

Você começou a engatinhar e adorava brincar de conhecer cada novo canto da nossa casa. Alguns te despedaçaram, outros te fizeram cair exausto de tanta diversão. Alguns te roubaram a inocência intacta, outros te trouxeram os sorrisos mais doces e sinceros. Mesmo com tantos receios nos primeiros passos, você nunca teve medo. Segurou em minha mão e andou. Desconsertado, cambaleando, com vontade de ser gente grande logo.

Mas aí você cresceu ainda mais. Era hora de eu te deixar ir ao mundo, te levar para aprender novas palavras. Ainda tinha medo de te ver longe por muito tempo, medo de você não conseguir andar com as próprias pernas ou alguém te derrubar pela simples vontade de te ver chorar. Queria te proteger de tudo, dos falsos contos de fadas, dos verdadeiros e imperceptíveis monstros. Por mais que seus passos já tomassem forma nas areias de uma praia distante, eu ainda queria te ajudar a terminar o castelo de areia que a gente começou.

O tempo passou. Você cresceu rápido demais. 

Hoje, você faz um ano. Sem bolo, sem vela, sem parabéns. Os doces? Ficam para o próximo aniversário. Os sonhos? Acabei de terminar uma bandeja deles e ainda estão quentes. Eu sei, não vai dar tempo você chegar para experimentar pelo menos um deles. Mas guardei seu presente aqui. Quando você chegar, os laços ainda estarão embrulhando o mesmo boneco de amor que eu encontrei naquele domingo quando você nasceu.

Texto de Patrick Moraes

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mil perdões


Maio de 2011,

Aquele sorriso mais uma vez em minha frente vinha acompanhado dessa vez dos olhos pequenos, tristes, tímidos, sem vergonha. Era confuso fazer uma simples análise naquele momento, era como tentar vergonhosamente decifrar um total estranho, com a diferença de você ter compartilhado intimidades um dia. 

Sentamos e a única coisa que eu consegui fazer foi te perguntar as trivialidades de vida, as mudanças e sorri de canto de boca. Você retribuiu, se soltou e me olhava hipnotizado. Já não sabia se seria melhor dificultar e te mostrar o quanto você perdeu ou me entregar como da primeira vez.

Aquela primeira vez em que você me olhava pequenininho, ainda se descobrindo, ainda me descobrindo com os olhos. A magia de me desnudar, o vagabundo charme capaz de me deixar envergonhado. Você não sabia nada e ao mesmo tempo fez tudo que deveria ter feito naquela noite deitados no chão. Mas agora estávamos em um bar, em plena quinta-feira e uma situação mais avessa do que imaginava.

De frente a você eu sabia que não ia resistir por muito tempo, sabia que aquele outro que me roubou de você nunca teve significado, nunca se quer soube te amar. Sempre quis saber se ele te dava prazer como eu, se ele te beijava com tanto desejo depois de duas ou três transas. Mas talvez você prefira assim, sem tantos laços pra não enforcar o presentinho colorido, bonito, mas machucado de tanto embrulho. Talvez você queira um lençol a cada noite, pra não lembrar quem deitou na noite passada. Talvez hoje, naquela mesa, você só queira os mil perdões que insistia em cada dose de uísque que tomou nesses longos meses desde o nosso fim.

Seu papo continuava o mesmo, sedutor e divertido, e sua risada gostosa era como se quisesse me fazer de palhaço. Eu não queria, mas meu coração já havia te perdoado, meu coração era tanto amor que já não sabia pensar. Perdi o freio, o bom senso e só ganhei uma dose de pavor. Era medo tudo que eu sentia, e foi exatamente isso que me fez te perder. Já não sabia ser tão firme a ponto de excitar seus pensamentos, capaz de trazer pra mim qualquer outro naquele bar em um instante e apenas com um olhar. Eu não queria te trair, eu queria que você levantasse da cadeira e lutasse por mim, jurasse que a gente era a gente e não só eu. Eu queria que você sentisse o ardor no peito por me perder, por se sentir trocado em moedas de pesos tão diferentes que não valia tentar compensar.

Três copos de vodca barata e você simplesmente me tinha de novo. E foram roupas, foram beijos, foram os toques mais profundos e atraentes. Você era quem eu tinha perdoado na ausência do eterno malfeitor e eu te tinha não mais em perdões, mas em sonhos traídos e jamais criados por mim. Você era quem eu demorei pra entender, mas que agora eu conseguia brincar, eu conseguia simplesmente viver naquela cama, naquelas noites, depois de um botequim. Era perdão, era desejo, você era a dose de uísque mal tomada que dessa vez não deixaria ressaca.

Texto de Patrick Moraes

Texto especial para o Esquinas inspirado
na música "Mil Perdões" de Chico Buarque.